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D. Laurence Freeman
À medida que nos aproximamos da Semana Santa preciso fazer um desabafo. Trata-se de meu problema com a religião, palavras religiosas, rituais, simbolismo, crenças. Desde a infância essas coisas sempre me foram muito preciosas e, frequentemente, uma fonte de profundo enriquecimento. Elas tem sido, e ainda são, pontes que ligam a superfície das coisas com os níveis mais profundos da realidade. Elas tem sido para mim uma maneira de evitar o horror mundano do viver na superfície, como se alguém fosse uma pedra que passa de leve por entre as ondas, antes de afundar como: bem, como uma pedra. Sinto uma afinidade natural com a linguagem da religião. Uma vida ou uma visão de mundo que ridicularize ou exclua, me parece muito incompleta.
As tentativas que regimes totalitários do século XX fizeram no sentido de erradicar a religião falharam, assim como falhariam tentativas de banir a música, a arte (tal como Platão queria em seu ideal de mundo), a poesia. Todavia, deveríamos denunciar e evitar a religião ruim, que sabemos ser possível, tal como a música ruim, ou a arte ruim. A maioria das pessoas concordaria que o evangelismo da TV norteamericana, esse que explora os pobres e promete favores de Deus em troca de doações para o estilo luxuoso da vida do evangelista, é um exemplo de religião ruim. Ou, uma religião que desrespeita outras religiões.
No entanto, para mim a Quaresma parece, de alguma maneira, uma pausa refrescante da religiosidade, uma redução na dose. Coloca-se a ênfase no deserto, mais do que na igreja, no silêncio, mais do que nas palavras, na quietude, mais do que no ritual. Tal como há algumas semanas parafraseei São Bento, a vida do monge é uma Quaresma perpétua. Entendo-a nesse sentido, não apenas caminhar na corda bamba da moderação, mas não permitir que a religião se torne desproporcional. Por exemplo, São Bento (que não era sacerdote) dizia que as ferramentas de trabalho do mosteiro deveriam ser tratadas com a mesma reverência com que se tratavam os vasos do altar. A religião não deveria ser sequestrada, isolada da vida cotidiana. O sagrado e o profano devem se fundir em uma religião centrada na Encarnação e na humanidade de Deus.
Isso não significa que os monges do deserto, ou São Bento, eram Quakers. Para mim, uma vida sem a Eucaristia, se assemelharia a caminhar pelo deserto da vida sem o maná. Porém, trata-se de um sacramento, e não de mágica, um sinal de uma realidade cuja fonte está em nosso interior, e não uma maneira de manipular as coisas, nem uma atividade compulsiva. Por isso a experiência contemplativa, tal como despertada pela meditação diária, ainda que ameaçadora para algumas pessoas pias, na verdade ajuda àqueles que são desencorajados pela religiosidade da igreja a se reconectarem de uma nova maneira com a vida simbólica e com a linguagem dela. Você não precisa ser religioso para que a meditação o conduza para a experiência da contemplação. Não se pode dizer que a meditação tornará alguém religioso, no sentido convencional de se tornar um frequentador regular da igreja; mas, que revelará a verdadeira natureza e significado da religião.
Tomás de Aquino dizia que “a criação é a mais perfeita e primordial revelação do divino”. A comunhão com a natureza é, portanto, uma forma de devoção. A criação, o belo mundo, é a igreja essencial. Me deparei com essa citação de Tomás de Aquino num livro do qual gostaria de falar amanhã. Não se trata de um livro das leituras da Quaresma, me apresso em dizer, mas, ainda assim, um bom livro para a Quaresma.
Texto original em inglês
Wednesday Lent Week Five
As we come closer to Holy Week, I need to get something off my chest. It is my problem with religion, religious words, ritual, symbolism, belief. From childhood these things have been quite precious to me and frequently a source of deep enrichment. They have been, and still are, bridges from the surface of things to the deeper levels of reality. For me, they have been a way of avoiding the mundane horror of living on the surface, as if one were a stone skimming across the waves, before sinking like – well, like a stone. I feel a natural affinity with the language of religion. A life or world-view that ridicules or excludes it seems to me very incomplete. Attempts by twentieth-century totalitarian regimes to eradicate religion failed, as would attempts to ban music, art, or (as Plato wanted to do in his ideal world) poetry. Nevertheless, we should expose and avoid bad religion which is just as much a possibility as bad music or bad art. We won’t get here into how to decide what good and bad mean. Most people would agree that American TV evangelism that exploits the poor and promises favours from God in return for donations to the evangelist’s luxurious lifestyle is an example of bad religion. Or a religion that disrespects other religions.
Yet, Lent for me feels in in some way a refreshing break from religiosity, a reduction in the dosage. The emphasis is on the desert rather than the church, silence rather than words, stillness rather than ritual. The monk’s life, as I quoted from St Benedict some weeks ago, is a perpetual Lent. I take it in this sense, not only walking the tightrope of moderation but not allowing religion to get out of proportion. For example, Benedict (who was not a priest) said that the work-tools of the monastery should be treated with the same reverence as the vessels of the altar. Religion should not be sequestrated, isolated from ordinary life. The sacred and the profane must merge in a religion centred on the Incarnation and the humanity of God.
This does not mean the desert monks or St Benedict were Quakers. A life without the Eucharist, for me, would feel like walking in the desert of life without manna. But it is a sacrament not magic, a sign of a reality whose source lies within us, not a way of manipulating things, or a compulsive activity. This is why the contemplative experience, as awakened by daily meditation, although threatening to some pious people, actually helps those who are put off by the church’s religiosity to reconnect to its symbolic life and language in a new way. You don’t need to be religious for meditation to lead you into the experience of contemplation. One can’t say that meditation will make you religious, in the conventional sense of becoming a regular church-goer; but it will reveal the true nature and meaning of religion.
Aquinas said that ‘creation is the primary and most perfect revelation of the divine’. To be in communion with nature is therefore a form of worship. Creation, the beautiful world, is the essential church. I came across this quotation from Aquinas in a book I would like to tell you about tomorrow. Not a book of Lenten readings, I hasten to add, but still a good book for Lent.
Lembre-se: Sente-se. Sente-se imóvel e, com a coluna ereta. Feche levemente os olhos. Sente-se relaxada(o), mas, atenta(o). Em silêncio, interiormente, comece a repetir uma única palavra. Recomendamos a palavra-oração "Maranatha". Recite-a em quatro silabas de igual duração. Ouça-a à medida que a pronuncia, suavemente mas continuamente. Não pense, nem imagine nada, nem de ordem espiritual, nem de qualquer outra ordem. Pensamentos e imagens provavelmente afluirão, mas, deixe-os passar. Simplesmente, continue a voltar sua atenção, com humildade e simplicidade, à fiel repetição de sua palavra, do início ao fim de sua meditação.