Carta 39 – Clemente de Alexandria: Jesus, o Médico Divino
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Talvez toda a identidade nasça do conflito. Heráclito, o filósofo pré-Socrático, achava que tudo surgia do conflito. A identidade cristã, em sua infância, também teve de defrontar-se com, e separar-se das, poderosas forças religiosas e filosóficas do judaísmo, do pensamento grego e do gnosticismo. Alexandria, uma cidade estabelecida na visão universalista, tornou-se o primeiro cadinho deste processo. Mesmo no tempo de Cristo, quando Philo, o pensador judeu, reconciliava ideias gregas e judaicas, e a Bíblia Hebraica estava sendo traduzida para o Grego, Alexandria era um lugar onde o diálogo, e não a coação, era o padrão da busca pela verdade. Clemente de Alexandria, nascido provavelmente em Atenas em 150 d.C., gravitou na direção dessa extraordinária cidade das ideias, e ali encontrou seu mentor cristão. Panteno, que havia visitado e estudado a filosofia da Índia, foi o primeiro diretor da primeira Escola Catequética de Cristianismo, cargo no qual Clemente o sucedeu. Quando esta época de fermento intelectual foi encerrada pelas perseguições do início do século terceiro, Clemente, um homem casado, foi forçado a embalar seus livros e fugir, e morreu no exílio, em lugar desconhecido, por volta do ano 215.
Como primeiro teólogo místico, ele nos legou um modelo duradouro da mente cristã, tão profundamente colorido com a catolicidade da mente de Cristo, que ele proclamou: ‘nada que não seja contra a natureza, é contra Cristo’. Um humanista cristão que viu a Palavra de Deus se preparando para a Encarnação, tanto através da filosofia Grega quanto da Bíblia Hebraica, Clemente apresentava a Cristandade de um modo que o mundo educado podia respeitar. Imaginem hoje o quanto nos sentimos melhor por nossas crenças basilares serem representadas por um Ratzinger ou um Rowan Williams, em vez de por um fundamentalista de mente estreita. A mente católica de Clemente contrasta com a de Tertuliano, seu contemporâneo africano, cuja fé tinha um tom muito diferente: “o que Atenas tem a ver com Jerusalém?” perguntava com desprezo. Mesmo sendo um “platonista cristão”, Clemente sustentava as doutrinas fundamentais da encarnação, da natureza humano-divina de Jesus, e de Cristo como o salvador universal (“todos têm necessidade de Cristo”), não como um teste dogmático da ortodoxia convencional, mas como uma revelação inspiradora. Para Clemente, a Encarnação é um trabalho conjunto de “ensino e revelação”, e este contínuo penetrar na fé mantém a frescura e a grandeza desta teologia, do mesmo modo que deve ter fundamentado e dirigido sua oração. Nele vemos que não se deve separar teologia de experiência.
Clemente é o primeiro teólogo a falar da salvação como “theosis” (divinização). Não se trata de um processo legalista. Para ele, o pecado não é uma infração de regras que merece punição, mas o resultado irracional da ignorância. Ele usa uma metáfora que Juliana de Norwich também empregaria para ilustrar sua teologia da salvação: o Adão que caiu numa vala porque não conseguiu saltar por cima dela, e depois dela não conseguiu sair. O segundo Adão veio para socorrê-lo, não para punir. É na profundidade sem imagens de nossa oração que nasce e cresce esta teologia da misericórdia salvífica. A salvação para Clemente não é um indulto, mas liberdade, saúde, conhecimento, vida. O “remédio do médico divino”, a Palavra, que por toda a eternidade “comanda o leme do Universo” e que, encarnado, é conhecido como “o médico que cura todas as enfermidades humanas e o sagrado sedutor da alma doente”
Saber isso é fé. Clemente, portanto, vê os cristãos como “verdadeiros gnósticos”. Embora ele defenda a crença cristã da tentativa de controle ensaiada pelo gnosticismo, ele não nega como e onde a abordagem gnóstica é verdadeira. A visão de Clemente do crescimento pessoal, no discípulo, desse conhecimento espiritual é expressa em suas três grandes obras. O Protreptikos (Exortação aos Gregos) apresenta a mente pagã a Cristo como Logos, com ênfase na crença. “Todos podem optar por crer ou descrer.” No Paedogogos (Tutor), ele se concentra na obra educacional de Cristo e na purificação do discípulo. Aqui vemos a primeira ilustração do que poderia ser chamado de “espiritualidade” cristã integral – a fé como um modo de vida holístico, com um significado socioeconômico, relativo a como as pessoas se vestiam, comiam, usavam jóias e perfumes, iam aos banhos, andavam, falavam e faziam amor na câmara nupcial. Em Stromateis (Miscelâneas), um estilo mais esotérico dirige-se a alunos mais avançados, nos quais o conhecimento experiencial direto da verdade já começou a aparecer. Esses três estágios da jornada espiritual se tornarão normativos para toda a tradição. Cristo, o Mestre “treina o gnóstico por mistérios, o crente por boas obras, o de coração duro pela disciplina corretiva”. O neófito obedece pelo medo, motivado pelo desejo de recompensas, o crente desenvolve bons hábitos, o gnóstico obedece pelo o amor e não tem desejos, porque tem tudo o que precisa através do Espírito Santo e, é tão semelhante a Deus quanto humanamente possível.
Irineu, Atanásio e mais tarde Agostinho compartilharam com Clemente a principal crença patrística de que o sentido da Encarnação de Deus é a divinização do ser humano. Essa afirmação corajosa – que mais tarde se tornou perigosa na tradição – atraiu o gnóstico da mesma maneira que hoje atrai os devotos da “New Age”, menos rigorosos. O significado cristão da ideia, porém, é preciso e racional. Liga a experiência pessoal ao mistério inefável da natureza de Deus. Theosis é o trabalho do amor, não apenas do pensamento. Veremos continuamente em nossa revisão da tradição que a contemplação é a obra do amor. “Quanto mais alguém ama a Deus, mais profundamente ele entra em Deus”, diz Clemente e o que torna isso possível é o que Tomás de Aquino chamaria de “conaturalidade”. É uma ideia de Platão que Clemente desenvolveu na fé cristã, através do versículo do Gênesis que diz que o ser humano é feito ‘à imagem e semelhança de Deus’. Só podemos conhecer aquilo com que nos parecemos. É o nous (mente), a parte mais interna da alma, segundo Platão, que torna possível conhecer a Deus. Mas, traduzir isso como “intelecto” hoje em dia é enganoso. Está muito mais perto dessa função da mente chamada ‘buddhi’ em sânscrito ou ‘coração’ nas Escrituras. Para Clemente, o nous é o significado do humano como “imagem de Deus” e é o órgão da oração.
Ser o ícone (imagem) de Deus não é, para o pensador místico, um estado congelado, mas um processo dinâmico. Somos um devir, um ser em processo de assimilação a Deus. Existe uma tendência à abstração em tudo isso – o corpo não recebe muita atenção e a contemplação pode parecer um tanto espectral. Mas a âncora cristã de Clemente – a Encarnação – controla isso. O “verdadeiro gnóstico” é um cristão eclesial totalmente comprometido. Boas obras fluem da oração e, como contemplativo cristão, ele é “maior no reino, aquele que fará e ensinará. (porque) Para ele, todos são amigos.”
A combinação de transcendência, expressa na theosis, e de imanência, expressa no amor, é a infinitude. Em Clemente, perfeição significa que nunca nos tornamos perfeitos e que “todo fim é um novo começo”. A natureza despida de imagens da contemplação – aquilo que Orígenes, sucessor de Clemente, chamaria de ‘oração pura’ é o trabalho experiencial dessa teologia na qual estamos continuamente nos movendo ‘através da santidade para a imensidão’. Clemente traz a primeira grande articulação da dimensão apofática de conhecer a Deus, à qual todos somos convocados. “Podemos chegar de alguma maneira à concepção do Todo-Poderoso, sem saber o que Ele é, mas o que Ele não é.” O cristão maduro, aprendemos com Clemente no início de nossa tradição, é teologicamente bilíngue. Ela pode dizer: onde Deus não está? Em lugar algum. Então, Deus está em todo lugar. Isso cobre todas as bases e evita a arrogância, que nos levou nesta época à loucura do cientificismo, acreditando apenas no que podemos ver e medir.
Por maior que tenha sido a marca da inteligência mística de Clemente no pensamento e espiritualidade cristãos, é a profundidade e a amplitude de seu encontro com Cristo que fazem dele aquela combinação rara, uma autoridade que se pode amar. Para ele, Jesus “tem uma voz de muitos tons e métodos variados para a salvação dos homens. Seu objetivo é criar a verdadeira saúde na alma”. Jesus, como salvador, descobriu para todos as “drogas racionais que levam a florescer a percepção e a salvação”. Por trás da arquitetura de uma grande mente, sentimos a intimidade de quem foi conquistado pela maravilhosa beleza do amor.
Até a Próxima Semana
Escola da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
BRASIL