Carta 41 – Gregório de Nissa
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A filosofia hindu inclui a doutrina ‘advaita’ ou da não-dualidade. Não somos unos com a realidade suprema, mas também não somos só dualisticamente relacionados a ela. Como acontece com todas as ideias, esta produziu muitas versões. Há formas fortes e fracas do ‘advaita’. Do mesmo modo, a consciência mística Cristã, que não é por si só uma questão de ideias, mas dá forma a novas ideias, que são as mais raras criações, tem modos fracos e fortes de teologia apofática. Esta, é a teologia que não foge, mas sim, abraça calorosamente o mistério da impossibilidade de conhecer o mistério de Deus. Na modalidade apofática, ninguém é mais forte do que Gregório de Nissa (335-395 dC). Talvez por isso, e pelo fato de que ele não foi desde cedo traduzido para o Latim, ele teve menos influência na teologia e na espiritualidade ocidentais, do que em sua própria Igreja Ortodoxa. Mas, ele é uma mente que o Ocidente moderno, cansado de divisões religiosas, se beneficia muito ao conhecer.
Criado como um senhor de terras onde hoje é a Turquia, Gregório é um dos três grandes ‘Pais da Capadócia’. Seu irmão Basílio, e o amigo de Basílio, Gregório Nazianzeno, eram respectivamente, o político-legislador, e o poeta-teólogo do grupo. Gregório de Nissa tornou-se o filósofo místico formado por uma vida de casado e por um bispado turbulento, e um tanto ineficiente. Parece que foi após a morte de seu irmão que ele recebeu sua herança, embora sentindo-se chamado a completar o legado de Basílio na defesa do Concílio de Costantinopla de 381 dC. Aquele foi um marco na resistência da igreja primitiva ao Arianismo, a doutrina que diminuía a estatura divina de Cristo. Pode-se pensar que esta longa batalha, com uma ainda poderosa heresia moderna (heresia quer dizer literalmente ‘um ponto de vista escolhido’), fosse só uma discussão acadêmica. Mas, de fato, ela envolvia nosso próprio conceito de identidade, e da percepção do potencial humano. O que Jesus é, nós somos. Pode-se pensar também que a tradição mística não tivesse muito a oferecer a este argumento refinado. Na realidade, ninguém demonstra melhor do que Gregório, nos trabalhos da última metade de sua vida, que é a consciência mística, que ilumina o mundo das ideias a partir de uma fonte suprarracional, que dá forma ao que de melhor pensamos. A lógica da experiência do místico se estende até o reino do pensamento e da ação, e exige consistência.
Gregório marca um distanciamento entre o misticismo Cristão e sua tradição Grega. Orígenes, uma mente muito Grega, mostra uma forma fraca do apofático. Ele gostava de pensar que, uma vez que ultrapassamos o caminho ascético dos obstáculos, e controlamos nossas paixões, veremos o que ansiávamos por ver, e conheceremos o que ansiávamos por conhecer. A ideia Grega de perfeição é a de ascender acima do mundo mutante, e da mente mutante, para um reino de imobilidade divina. De lá, nos sentamos em um trono de consciência, e olhamos abaixo para o mundo em mutação. É uma visão que ainda influencia nossas ideias de céu e bem aventurança. Para Gregório, em seu tratado Sobre a Perfeição, ou em sua Vida de Moisés, a ascese é o meio de superar a ‘guerra civil dentro de nós mesmos’. Precisamos nos debater com a raiva da lembrança das injúrias sofridas, como os cidadãos da Irlanda do Norte ou do Iraque terão que fazer por muito tempo. O desejo tem que ser treinado e transformado, para nos permitir viver com sentido. Nós podemos melhorar. Mas, a perfeição nunca é uma realização final. ‘O divino é por sua própria natureza infinito, sem fronteiras que o cerquem.’ À medida que o desejo é purificado no trabalho da oração, ele não atinge a satisfação final, mas se intensifica enquanto progredimos. Nunca podemos nos satisfazer com aquilo que recebemos de Deus.
Para Jean Danielou, um dos grandes comentaristas de Gregório, essa linha de entendimento representa um avanço sobre a posição de Orígenes. A impossibilidade de conhecer, de alcançar a Deus, cria assim o misticismo da escuridão, ou ‘agnosia’: aparentemente o oposto de ‘gnose’. Há dois tipos de escuridão: fraca e forte. A primeira é expressa naquilo que Gregório disse sobre o irmão, sob cuja sombra ele parecia se sentir: ‘nós o vimos entrar na escuridão onde Deus estava… ele compreendeu o que era invisível para outros’. Essa é a escuridão aceitável. Nós estamos mistificados, mas então compreendemos, estamos cegos, mas então enxergamos. Porém, há uma escuridão mais escura: ‘a verdadeira visão e conhecimento do que procuramos consiste precisamente em não ver, em perceber que nossa meta transcende todo o conhecimento…’
A perfeição é o progresso contínuo. A opinião Grega de que a mudança é um defeito, é superada pelo processo de sempre mudar para algo melhor, ‘da glória para a glória’. Todo final é um novo começo. O horizonte vai se afastando continuamente à medida que nos movemos em sua direção. ‘Perfeição’ consiste em nunca pararmos em nosso crescimento para o bem. Se aceitamos isso, enfrentamos sérias consequências, desde que desejemos viver de maneira consistente com o que acreditamos. Transcendência e paradoxo (‘movimento e estabilidade são o mesmo’) são inerentes ao senso humano. A consciência é um universo em expansão. O medo de que somos condenados à insatisfação permanente, uma conclusão natural para quem quer que esteja consciente de seus ciclos de desejo natural, é transformado em intoxicação com a inexaurível bem aventurança. A bondade não mais parece enjoativa, e Cristo não é um objeto de idolatria, mas o Caminho para o Pai.
Conhecendo a Deus, na experiência transcendente de saber que não podemos conhecer Deus, somos devolvidos a nós mesmos de uma nova maneira. Através da tradição mística, um tema fundamental é o da ligação entre o nosso autoconhecimento e nossa capacidade de conhecer a Deus. Gregório posiciona sua antropologia Cristã na assertiva bíblica de que somos ‘ícones’ de Deus. Não há uma divisão gnóstica entre o natural e o sobrenatural. Ele não foi atraído pelo jogo metafísico entre imagem e semelhança, como outros mestres místicos o foram… é um alívio sabermo-nos persuadidos, lógica e teologicamente, de que somos essencialmente bons. A mortalidade é um remédio para o pecado original e não uma punição, e ‘a graça da ressurreição é a restauração do ser humano ao seu estado original’ de bem-aventurança.
Gregório administra uma forte dose de ‘agnosia’. No início parece desagradável, mas quando superamos isso, sentimos seu efeito medicinal. Paradoxalmente, o reino humano é criado e afirmado, porque não deixamos de ser humanos, mesmo na união com Deus. A esperança está inclusa na ideia de que todo final é um começo. O pecado é a recusa de seguir adiante. O termo de São Paulo ‘epectasis’ (Fl 3, 13) confere a Gregório uma autoridade na escritura. Tensão e expansão, o esquecimento do que passou, um esforço à frente para o próximo estágio.
Isso afeta a oração radicalmente, e dá mais profundidade à noção de pureza de Orígenes. Gregório ajuda-nos a compreender por que podemos parar de pensar em Deus e, na verdade, precisamos fazê-lo, para entrar completamente na oração. ‘Qualquer representação é um obstáculo’, diz ele. Isto pode ser visto como uma limitação da oração, mas na verdade, é uma expansão da vida. ‘Aquele que pensa que Deus pode ser conhecido não tem realmente vida, pois foi falsamente afastado do verdadeiro Ser, para algo criado por sua própria imaginação’.
E, ainda assim Gregório não foi um monge eremita, mas um bispo, um pastor e mestre. Em vez de diminuir a vida sacramental, sua teologia mística a revitaliza. Em um sermão contra aqueles que adiam o batismo, ele diz que a força da Cristandade é dupla: ‘regeneração pela fé’, e ‘participação em símbolos e ritos místicos’. O batismo é a entrada em uma terra que dá frutos na felicidade, e a Eucaristia é o remédio da imortalidade que faz uma diferença física para aqueles que a celebram. O que poderia, de modo mais amigável, expressar a centralidade da experiência contemplativa na Igreja, ou o sentido da vida como uma liturgia mística?
Até a Próxima Semana
Escola da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
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