carta 50 – Os demônios escondidos em nossos pensamentos
Em Praktikos, Evágrio explica: “Há oito categorias gerais e básicas de pensamentos nas quais estão incluídos todos os pensamentos. A primeira é a da gula [ganância], depois a impureza [luxúria], a avareza, a tristeza, a raiva, a acedia, a vanglória e, por último, o orgulho”. Como veremos, todos esses pensamentos são causados por feridas em nosso ego na infância e são supercompensações para as necessidades de sobrevivência que foram realmente – ou apenas em nossa percepção – parcialmente atendidas ou não atendidas. (Acedia é aqui a exceção e vamos encontrá-lo na próxima semana.)
Vimos a ênfase de Evágrio em “observar os pensamentos”, estar atento. Ele ainda dá conselhos práticos para descobrir quais são nossos pensamentos persistentes mais importantes, nossas feridas primárias: “Devemos tomar cuidado para observar os diferentes tipos de demônios e tomar nota das circunstâncias de sua vinda. Saberemos isso a partir de nossos pensamentos. Devemos considerar quais dos demônios são menos frequentes em seus ataques, quais são os mais vexatórios, quais são os que preenchem o campo mais facilmente e quais são os mais resistentes.”
Seu verdadeiro conhecimento da mente humana e sua atenção aos detalhes é muito impressionante. Evágrio e seus contemporâneos viam os principais “pensamentos” ou “paixões” que nos movem como “gula” e “orgulho”. Todos os outros “pensamentos” seguem logicamente desses dois. A “ganância” é vista como um excesso de indulgência nos sentidos em geral, por isso se aplica à comida/bebida, às posses e ao sexo, daí a “impureza” [luxúria]. Isso, por sua vez, leva à “avareza” – você quer manter o que tem – ou à “tristeza” – você não tem tudo o que gostaria. Então surge a “raiva” (e a inveja) em relação àqueles que têm o que lhe falta, ou que tentam tirá-lo de você. Então, por sua vez, vêm a “vanglória” e o “orgulho” – você quer mostrar suas posses e conquistas e reivindicar todo o crédito por elas, não levando em conta os “talentos” que você recebeu
como um dom do Divino.
A conexão entre esses “pensamentos” e nossas “necessidades de sobrevivência”, especialmente aquelas que são percebidas como “não atendidas”, é fácil de perceber. A necessidade normal e comum aceitável de ter o suficiente para a sobrevivência torna-se, por causa dessas “necessidades não atendidas” inconscientes, uma pulsão avassaladora, por exemplo, a “ganância”. Então, possuir coisas e pessoas nos dará a sensação ilusória do amor, prazer, segurança, estima, poder e controle que almejamos. Como sua principal consideração é a sobrevivência, o ego sequestra todo o nosso ser para o egocentrismo, como Máximo, o Confessor, alguns séculos depois de Evágrio, formulou: “Quem quer que possua philautia tem todas as paixões” – a palavra grega “philautia” significa amor-próprio, egocentrismo, egoísmo. Ele também relacionou isso com o instinto de sobrevivência: “A causa desse desvio das energias naturais em paixões destrutivas é o medo oculto da morte”.
Precisamos de um instinto de sobrevivência, ele é parte integrante e essencial da nossa natureza. Basta ver um recém-nascido agarrar-se com todas as forças ao seu dedo, quando finge erguê-lo apenas com um dedo do berço, para perceber verdadeiramente quão forte é este instinto de sobrevivência. Esta é basicamente a função do ego para nos ajudar a sobreviver, daí a sua importância. Mas o que temos que evitar é o domínio “demoníaco” do ego impulsionado pela necessidade de compensar excessivamente as feridas causadas por “necessidades não atendidas” percebidas ou reais. Então não somos livres, mas literalmente possuídos demoníacamente. Somente a consciência e a compreensão nos libertarão de sua dominação.
Daí a importância da atenção plena e da oração/meditação. É exatamente isso que Evágrio enfatiza, como ouvimos há algumas semanas: a maneira de confrontar e identificar nossos “demônios/maus pensamentos” pessoais é dupla: pela oração/meditação – levando ao silêncio interior necessário para estarmos conscientes dos poderes espirituais de apoio internos e seu dom de insight sobre nosso comportamento – e pelo esforço, permanecendo atentos fora do tempo real de oração, na vida diária, aos nossos pensamentos e ações.
Ambos, então, levarão ao autoconhecimento e à conscientização. Só podemos combater esses demônios trazendo-os do inconsciente para a luz da consciência, e só podemos fazer isso com a ajuda de nosso eu “verdadeiro”, a força Divina da Luz e do Amor dentro de nós. Enquanto forem forças inconscientes, não temos controle sobre elas. Apenas tornando-as conscientes, tomando consciência delas e aceitando-as, roubamos seu poder.
Evágrio, como Freud, Jung e muitos outros terapeutas modernos, considera o insight como o início crucial da cura, pelo fato de trazer material inconsciente à luz da consciência. A fonte do insight é nossa consciência intuitiva espiritual, ligada à consciência Divina, mas nossa consciência racional é então necessária para esclarecer esse insight. Daí a injunção que ouvimos na Filocalia: “Recolhe a tua mente no teu coração”. Mas esta “mente” tem de ser a consciência racional livre das feridas do ego que se tornaram “paixões”: “a razão é o poder mais valioso e mais especificamente humano do homem e, no entanto, está sujeita aos efeitos de distorção das paixões. Somente a compreensão das paixões do homem pode libertar sua razão para funcionar adequadamente”, como menciona Erich Fromm, psicólogo e psicanalista alemão de nossos tempos em Psicanálise e Religião.
Kim Nataraja