carta 17 – A importância dos evangelhos
Impressiona-nos a grande diversidade de formas nas quais o cristianismo se expressa hoje em dia. Muitos de nós pensamos que, se voltássemos ao início dos tempos cristãos, escaparíamos dessa diversidade e descobriríamos uma forma pura. Infelizmente, isso é uma ilusão. Laurence Freeman em Jesus, o mestre interior, menciona que: “A ideia de que outrora existia apenas uma ortodoxia cristã monolítica, que mais tarde se fragmentou ou se diluiu não é endossada pela riqueza e pela diversidade das perspectivas encontradas nos Evangelhos”. (pág. 82)
Jesus era um mestre carismático, que compartilhava sua sabedoria oralmente, e tentar capturar o verdadeiro espírito de Seu ensino era muito difícil. Os primeiros cristãos ouviram o que se encaixava em sua visão de mundo, o que ressoava com eles. Portanto, suas palavras foram filtradas através de sua estrutura cultural, mental, psicológica e emocional. O resultado foi que havia várias interpretações e relatos diferentes da vida e do ensinamento de Jesus, cada um deles tendo um viés individual – daí as inconsistências. “São Lucas observa, no início de seu Evangelho, que havia muitos outros relatos em circulação no século I depois da Ressureição, ‘conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra’”. (pág. 81).
Laurence Freeman continua: “É possível que nunca saberemos ‘de fato’ quem escreveu os evangelhos atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João…Ele comunicava sua mensagem oralmente… Era o ensinamento vivo de ‘alguém que ensinava com autoridade’… Como textos, eles cresceram dentro da tradição oral e da tradição escrita, mas foram posteriormente mais refinados pela oração pessoal e pela discussão comunitária. (págs. 76-77) Temos que lembrar também que esses quatro evangelhos canônicos “foram escritos por pessoas que viveram fora da Palestina duas ou três gerações depois dos eventos por elas descritos… Os evangelhos são diferentes janelas que dão para a mesma realidade.” (págs. 81-82)
A evidência dessa diversidade inicial pode ser encontrada nas escrituras que chegaram até nós. Paulo repreende os coríntios por “contendas”, porque “cada um de vós está dizendo: ‘Eu sou o homem de Paulo’, ou ‘Eu sou para os Apolos’; ‘ Eu sigo Cefas’, ou ‘Eu sou de Cristo'”. Lemos em “Atos” e “Gálatas” de diferenças de opinião mesmo entre Pedro e Paulo, Paulo e Tiago, e João e Tomé. Essas divisões foram inúteis, especialmente porque ocorreram durante um período de terríveis perseguições e martírio.
Além disso, nesses primeiros séculos não havia realmente nenhuma instituição reconhecível chamada Igreja. Havia muito poucos bispos, não havia credos e não havia cânon das escrituras acordado. Além de Alexandria, onde havia edifícios dedicados, porque ela era protegida, sendo o celeiro do Império Romano, as pessoas se reuniam por razões de segurança em geral em grupos separados de casas dispersas – muito semelhantes aos nossos atuais grupos de meditação em todo o mundo.
Para lidar com essa diversidade, Irineu, o bispo de Lyon (130-202 EC), um dos poucos bispos existentes, decidiu reconhecer apenas quatro evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas e João e as cartas de São Paulo como “ortodoxos”, ou seja, “pensamento correto”, que formariam o “cânon”, a diretriz, com o objetivo de alcançar alguma unidade na Igreja primitiva. Ele escolheu o Evangelho de João em vez do Evangelho de Tomé – embora este último fosse muito popular – puramente por uma escolha pessoal: seu mestre Policarpo tinha sido um discípulo de João. Irineu poderia, portanto, reivindicar a importantíssima sucessão apostólica. Todos os outros evangelhos – e os grupos que os usaram – foram considerados “hereges”, o que significa literalmente “alguém que escolhe”. Alguns deles também tinham um pedigree apostólico, mas Irineu sentiu que a linha tinha que ser traçada em algum lugar.
Kim Nataraja