Carta 36 – A Experiência Mística de Jesus
Cara(o) Amiga(o)
Na semana passada vimos que a consciência mística é tão antiga quanto as montanhas. Muitos dos maiores cientistas de nossa época também passaram a ver o mundo desta maneira – unitiva e reverentemente. As raízes do que chamamos tradição mística cristã, portanto, antecedem o Jesus histórico. Isto é consistente com a teologia da Encarnação, no sentido de que o Verbo eterno entrou no tempo e no espaço, na pessoa de Jesus, de um modo sem precedentes e irrepetível. Vale a pena nos demorarmos um pouco neste paradoxo da “tempiternidade” (o termo de Raimon Panikkar para a integração de tempo e eternidade em uma única concepção), porque destaca o que é diferente na experiência cristã. Também explica a razão de as Escrituras e as palavras de Jesus poderem ser entendidas de tantas maneiras diferentes. Este mesmo mistério nos mostra como participamos de tudo o que é comum à humanidade, através de um mergulho profundo em nossa própria tradição. Permanecendo em nossa própria fé, desde que tenhamos explorado suas profundezas, emergimos onde Jesus Ressuscitado vem a nosso encontro, em uma dimensão sem limites.
As raízes da sabedoria mística Cristã se encontram nos recintos mais profundos do coração de Jesus. O coração humano, símbolo universal da integridade, bem como da interioridade – é sabidamente difícil de perscrutar. Não poderíamos almejar enxergar no coração de Jesus se Ele não nos tivesse dito, especificamente, ter “revelado a ti tudo que ouvi do Pai (Jo, 15,15). Ele nos chama de amigos, de quem nada esconde. Esta revelação extraordinária, com tudo o que sugere sobre a relação de Deus com a humanidade, é o cerne da fé cristã, e fundamenta toda interpretação da Cruz e da Ressurreição.
Jesus é frequentemente chamado de ‘mestre’ no Novo Testamento – mais do que por qualquer outro título. Nós aprendemos com ele, o que está implícito na palavra discípulo (em latim a raiz discere quer dizer aprender). Como qualquer bom professor, Jesus compartilha o que sabe tornando nossas mentes mais flexíveis e ampliando nossa capacidade de gnose, o conhecimento em primeira-mão proporcionado pela experiência pessoal. Isto é o que o Conselho Vaticano II chamou de vocação universal para a santidade, e a razão de ter enfatizado tanto a retomada da tradição contemplativa. Um dos melhores métodos para ensinar isso é fazer perguntas em vez de acumular informações. A experiência mística floresce quando a mente está aberta, e esta é a função das perguntas, abrir a mente.
Entre as muitas perguntas que Jesus propõe, talvez a crucial, aquela que também mostra como sua experiência do Pai se torna a nossa própria experiência, seja: “quem dizeis que Eu sou?” (Lc 9, 18; Mt 16, 15). Ela não é invasiva. Ignore-a se quiser. Mas, se a escutamos, ela nos conduz, como Alice, a um túnel profundo, a um mundo de intensa e extraordinária iluminação e realidade, a que Jesus chama “o Reino”. É como se, escutando essa pergunta, fossemos levados a encarar a questão básica da consciência humana que tentamos adiar indefinidamente: “Quem sou eu?”. Os místicos Cristãos sempre souberam que o autoconhecimento é inseparável do nosso conhecimento de Deus. “Que eu possa conhecer-me para poder conhecer-Te”, orava Santo Agostinho. O autoconhecimento de Jesus é a base de sua humilde autoridade para formular sua pergunta. A sabedoria mística é humilde. “Sei de onde vim e para onde vou” (Jo 8,14). É como se Jesus, o mestre dos Evangelhos e de nossos corações, nos quisesse capazes de dizer o mesmo sobre nós mesmos.
Basileia, o termo grego para “reino” é melhor traduzido como “domínio”. Isto nos faz recordar que o reino de Deus não é um local de destinação ou uma recompensa a ganhar. Trata-se da presença do puro ser de Deus, em que se transcende todas as dualidades, sem, no entanto, destruí-las. Não se pode dizer ‘olhe aqui está’ ou “ali está’, porque de fato o reino de Deus está no meio de vós’ (Lc 17, 20). A preposição aqui, eu, significa ao mesmo tempo dentro e entre e, portanto, tal como a maior parte da gramática de S. Paulo, evoca ao mesmo tempo nuances místicas e sociais. Místicos e morais, contemplativos e ativos, os Evangelhos são uma fonte infinitamente fértil de crescimento espiritual. Eles mudam de sentido de acordo com as condições em que são lidos e adaptam-se à inteligência do coração do leitor. A oração contemplativa e a palavra viva das Escrituras formaram conjuntamente a tradição mística cristã. Alicerçada na experiência de Jesus, a tradição mística cristã significa simplesmente entrar no Reino em amorosa união com Ele, iluminados por sua palavra, nas circunstâncias únicas de nossa vida.
Jesus fez muitas coisas. Ele perdoou pecados, curou os doentes, alimentou os famintos, ressuscitou os mortos, acalmou tempestades, falou por parábolas e, regularmente, recolhia-se para ficar só e silente, em oração. Mas, o mais importante de tudo o que disse e fez, foi a manifestação do Reino. ‘As palavras que vos digo não as digo de mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, é que realiza as suas próprias obras (Jo 14,10-11).
Ao longo de muitos séculos, esta afirmação da união com Deus e a garantia de Jesus acerca do envio do Espírito, levou ao modelo Trinitário da linguagem mística cristã. Isto, no entanto, como veremos no decorrer destas séries, em geral se assemelha mais à linguagem da alcova do que da sala de conferências. Por isso, não nos surpreende que os místicos da cristandade tenham colidido, com grande regularidade, com suas autoridades acadêmicas e burocráticas. Nem o Judaísmo, nem o Islão, nossas fés irmãs, são tão passionais sobre a ortodoxia doutrinária. E, no entanto, o místico é frequentemente impelido, com risco pessoal, a encontrar palavras para a experiência que o silêncio da união no coração despertou. Jesus, o modelo do contemplativo cristão, também mostrou como a experiência do amor de Deus exige expressão para produzir revolução na consciência humana.
Entramos no Reino através de uma transformação da consciência na qualidade altruísta do amor. As bem-aventuranças descrevem como o mundo se parece depois dessa transformação. O amor é a moeda do Reino e o mandamento do amor é a grande simplificação que une a moral e a mística. O Cristianismo é essencialmente uma religião mística porque não faz sentido fora da visão unitiva, na qual todos os opostos se reconciliam. Passamos a amar até mesmo nossos inimigos. Jesus ensinou que a contemplação e a não-violência são os pilares do Reino.
À medida que o discípulo cristão se desenvolve nessa direção, alimentado pela palavra, pelo sacramento, pela comunidade e pelo diálogo com outras fés, sua experiência torna-se nossa. A experiência mística cristã é, essencialmente, apenas vida cristã. Vivendo-a, vemos que a grande presença interior que ele decanta no Discurso da Última Ceia – “Para que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, para que também eles estejam em nós”, não são apenas palavras.
Leituras complementares:
The Roots of Christian Mysticism, de Olivier Clement
Jesus: O Mestre Interior, de Laurence Freeman
Até a Próxima Semana
Escola da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
BRASIL