carta 46 – Diferentes tipos de meditação (2)

Conhecemos Evágrio agora em várias ocasiões, pois ele é um dos mais importantes professores cristãos primitivos sobre contemplação. Ele foi fortemente influenciado pelo ensino de Orígenes e por Gregório de Nissa, o fundador da tradição hesicasta. Foi professor de João Cassiano e, por meio dele, influenciou São Bento e John Main.

Seus dois livros mais importantes, que ainda estão disponíveis em inglês, são, em primeiro lugar, Chapters on Prayer, seguido de Praktikos, onde ele descreve claramente as etapas e dificuldades no caminho espiritual e dá conselhos práticos a todos aqueles que levam a sério a oração contemplativa. Seu ensinamento é embalado em frases curtas, que estimulam a reflexão atenta. Eles parecem muito semelhantes aos koans da tradição Zen – Thomas Merton chamou Evágrio de “mestre Zen”. Na verdade, muitos dos ditos soam muito budistas aos nossos ouvidos modernos, embora ele fosse totalmente centrado em Cristo.

Embora estivesse mergulhado nas Escrituras e vivesse sua vida muito com base nelas, ele enfatizou que viver uma vida moral não era suficiente: “Os efeitos de guardar os mandamentos não são suficientes para curar completamente os poderes da alma – eles devem ser complementados por uma atividade contemplativa e essa atividade deve penetrar no Espírito”. E se você seguir o conselho dele: “Se vocês orarem com toda a verdade, encontrarão um profundo senso de confiança. Então os anjos caminharão com vocês e os iluminarão sobre o significado das coisas criadas.” Portanto, a oração vem em primeiro lugar, depois a iluminação pelo dom da graça.

A oração foi o fundamento de tudo o que ele ensinou, como mostra sua variação da frase de Jesus: “Ide vender vossos bens e dai aos pobres, e tomai a vossa cruz para que possais orar sem distrações”. Para Evágrio, a oração é essencialmente terapia que leva à totalidade do ser, à unidade com Deus e à harmonia com os outros. Por causa das próprias experiências de Evágrio de cair em tentações no mundo comum, bem como sua experiência no deserto, ele adquiriu profundos insights psicológicos sobre o funcionamento da mente humana e, como o ouvimos dizer: “A vida ascética é o método espiritual para limpar a parte emocional da alma”. (‘Ascético’ significa aqui uma vida baseada na prática da meditação
que leva à oração contemplativa profunda.) Ele era muito admirado e muitos monges o procuraram como um pai espiritual, um Abba.

O primeiro problema, ele aponta, é aquele com o qual estamos mais familiarizados e já conhecemos antes: nossos pensamentos. A menos que possamos abandonar nossos pensamentos, a oração é difícil mas, “Se o frasco for deixado de pé por um tempo, a escória afunda no fundo e a água se torna clara e transparente. Da mesma forma, nosso coração, uma vez descansado e mergulhado em profundo silêncio, pode refletir Deus”. Mas antes de seguirmos seus conselhos e observarmos nossos pensamentos (que ele chamou de “as paixões”), ele chama nossa atenção para a fonte da qual os pensamentos emergem, ou seja, sensações, sentimentos e emoções. Isso é verdadeiro ‘Mindfulness’, estar ciente do que está acontecendo em nossa mente e corpo. Durante a oração, toda a nossa atenção está focada em nossa palavra, mas em todos os outros momentos mantemos não apenas nosso mantra em [nossa] mente, mas também notamos todas as sensações, sentimentos, emoções e pensamentos passageiros que flutuam em nossa mente. O ponto de partida são os sentidos: “As paixões estão habituadas a ser despertadas pelos sentidos”.

Então, a sequência causal segundo ele é a seguinte: as impressões sensoriais invocam sentimentos, o prazer desses sentimentos leva por sua vez aos desejos, aos pensamentos, depois à ação: “Tudo o que um homem ama ele desejará com todas as suas forças. O que ele deseja, ele se esforça para se apoderar… é o sentimento, que faz nascer o desejo”. O exemplo mais marcante de uma impressão sensorial ser a causa de primeiro sentirmos e depois desejarmos ocorre em Combray (cidade natal de Marcel Proust, N.T.), a primeira parte do primeiro livro da obra-prima de Proust, A la Recherche du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido). Uma tarde, ele está cansado, deprimido e mergulha um biscoito, uma “pequena madeleine” em seu chá. No momento em que ele a prova, um intenso sentimento de alegria flui por todo o seu ser. Então ele é dominado por pensamentos de sua infância.

Surge o desejo de capturar esse tempo e a ação que se segue é escrever uma obra-prima. Esta é, então, a inevitável cadeia de eventos proposta por Evágrio, apontando que precisamos estar atentos às sensações, sentimentos e desejos antes que eles aumentem e bordem os pensamentos que inevitavelmente levarão à ação, às vezes inadequada. No caso de Proust, o forte sentimento de nostalgia produziu uma obra de arte; para alguns de nós, infelizmente, reações emocionais automáticas inadequadas são a consequência. Evágrio, portanto, recomenda a constante consciência/atenção plena não apenas de nossas sensações, sentimentos, emoções e desejos, mas também de nossos pensamentos, especialmente aqueles que encapsulam memórias com um forte conteúdo emocional, sonhos, medos e fantasias. Precisamos estar cientes de que nosso estado emocional interno será refletido nas circunstâncias externas que criamos. Na próxima semana, mais deste professor cristão do século IV de ‘Mindfulness’ e meditação/oração contemplativa.

Kim Nataraja

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