Carta 37 – São Paulo
Cara(o) Amiga(o)
São Paulo é visto por muitos como o fundador do Cristianismo. Certamente, sem ele, o Cristianismo não teria se desenvolvido do mesmo modo. Nem ele teria se desenvolvido do mesmo modo, se não tivesse sido atirado de seu cavalo na estrada para Damasco e, em uma luz cegante, visto Jesus, o que mudou inteiramente sua vida. Dizer que ele moldou a forma futura do cristianismo, não quer dizer que ele tenha deposto Jesus, mas, que assim como nós, ele não o conhecera “em carne e osso”. Apesar de insistir na humanidade de Cristo, Paulo não está muito interessado no Jesus histórico. Isso tampouco quer dizer que Paulo estivesse preocupado com estruturas e regras. De fato, no que se referia à religião, ele foi radical: um pioneiro, e não um burocrata; um místico, mais do que um legalista. São Pedro chamava a Paulo amigo e “querido irmão” e recomendava suas cartas, embora aconselhasse cautela com relação às passagens de difícil compreensão, e que poderiam causar mal-entendidos (2 Pd 3, 15). Pedro divergira dele durante o Concílio de Jerusalém, sobre a admissão de gentios à comunhão cristã. Em Roma ambos eram igualmente reverenciados, enquanto aguardavam que seu destino se cumprisse. No entanto, a tradição confere o título de Príncipe dos Apóstolos, e rastreia sua sucessão desde Pedro, e não de Paulo. Paulo talvez não fosse a pessoa que você escolheria para uma diocese, caso precisasse de alguém de um tipo prático e eficiente.
Ele nasceu provavelmente em uma próspera família judia, em uma pluralista cidade greco-romana. Alguns acham que aos vinte anos ele foi para Jerusalém para estudar Direito e, conforme ele mesmo admitiu, tornou-se um fundamentalista fanático (zelote), perseguidor dos seguidores de Jesus. Antes de sua experiência de conversão, ele podia ser comparado, ainda de acordo com sua autodescrição, aos piores fundamentalistas (aiatolás ou grandes inquisidores). Ele não apenas estava certo, mas os opositores deviam ser punidos por estarem errados. Mais tarde, ele reverteu suas ideias mais profundas quanto ao pecado, à graça e à salvação. Essa revolução religiosa, no entanto, não foi essencialmente intelectual, mas espiritual. Durante vários séculos, começando com Paulo e a igreja apostólica, a teologia desenvolveu-se sob a influência da experiência mística nascida na profunda contemplação. Com o tempo as coisas mudaram, especialmente na igreja ocidental, e a teologia, enquanto “rainha das ciências”, abandonou a suposta “subjetividade” da oração, e começou a monitorar o experienciado, e a fiscalizar a verificação “pessoal” da fé. Podemos ver nas cartas de Paulo as raízes dessa tensão natural e perene entre o religioso e o espiritual, tão comumente invocada hoje, embora ele não pudesse ter adivinhado onde isso poderia levar.
Sua primeira carta aos Tessalonicenses é o primeiro texto cristão, e em seu terceiro verso expressa a tríade de fé, esperança e caridade que, tal como tantas de suas expressões, modelou o vocabulário teológico da igreja. Seu uso desses e de outros termos influenciou todos os escritores místicos posteriores: gnose (o conhecimento através da experiência pessoal), pistis (fé como relacionamento pessoal), ágape (amor divino). Podemos adivinhar sua complexa personalidade religiosa, através de suas cartas, escritas para pequenas igrejas domésticas, de cujas vidas ele mantinha um interesse apaixonado, com certa possessividade paternal. Como Moisés, ele parece não ter sido um orador carismático. Ele era ardente no amor e na raiva. Ele podia ser terno, áspero, capaz de perdoar, e impaciente. Seu “espinho na carne”, o que quer que tenha sido, manteve-o humilde em sua determinação, e em sua total imersão na experiência de Cristo. “Em Cristo” aparece 164 vezes nos textos paulinos, referindo-se sempre a esta vida, enquanto a frase “com Cristo”, refere-se à que virá depois.
Como muitos fundadores, a linha que separa o homem do mito é tênue. Hoje em dia, pensa-se que somente metade das cartas paulinas tenha sido escrita por ele. Ainda assim, Paulo é maior que sua personalidade e identidade históricas. A sua experiência de conversão, no entanto, é totalmente pessoal e é descrita mais de uma vez em suas cartas, e nos Atos. Ela lhe tomou três anos, antes que ele pudesse retomar sua vida. Ele nos mostra que a experiência mística é transcendente, mas não pode ser separada da psique individual, na qual acontece, e à qual pode sobrecarregar. A experiência de Paulo foi um “misticismo light”, mas os escritos que inspirou contêm material que depois enriqueceu todo tipo de literatura mística cristã, aí incluída “A Noite Escura da Alma”. De modo não-sistemático, a teologia de Paulo contém o catafático (aquilo que podemos dizer a respeito de Deus) e o apofático (aquilo que não se pode dizer a Seu respeito). Ele nos diz que “em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2, 9), um elemento importante no desenvolvimento do dogma da Encarnação. Ele também prega que, através da fé, Cristo pode habitar nossos corações em amor, e que poderemos “conhecer” sua totalidade, “embora esteja além do conhecimento” (Ef 3, 17).
Sua conversão foi apenas o começo, e talvez tenha sido tanto uma implosão de seu lado sombrio, quanto um momento inteiramente místico. Em 2Cor 12 Paulo refere-se a uma experiência de ser “arrebatado ao paraíso” (se em seu corpo, não sei; se fora do corpo, não sei; Deus o sabe!) durante a qual ele ouviu “palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir”. Possui similaridades, em expressão, com o misticismo apocalíptico judaico, mas é também único, especialmente por ser tão explicitamente autobiográfico. A importância de contar isso, entretanto, não é a de enaltecer-se, mas a de insistir em que as pessoas formem uma opinião dele com base no que vêem. E, como é ele? É assim como nós. A ele foi dado “um espinho na carne” para mantê-lo humilde e, apesar de suas preces, Deus não lho tirou. Assim, ele foi mantido fraco. E é de sua fraqueza, e não de suas experiências místicas, que ele se orgulha, porque o poder de Cristo repousa na fraqueza, e o poder divino é visto plenamente apenas na fraqueza humana. “Pois quando sou fraco, então é que sou forte”. Aqui encontramos a essencial renúncia ao poder, que está no fulcro do mistério de Cristo e da vida cristã. O misticismo cristão não focaliza a experiência subjetiva, que facilmente infla o ego, mas a obra de Deus no contexto maior do mundo e do serviço às outras pessoas.
Essa descrição do êxtase alimentou muitos escritores místicos subsequentes, tais como Orígenes e Ambrósio. Ajudou-os a cristianizar a “theoria” (visão) platônica que se tornou uma palavra chave cristã para a contemplação. Ao permitir conexões com figuras anteriores, tais como Plotino, ela mostra como o diálogo interreligioso floresce no místico, um aspecto que não pode ser esquecido nos dias de hoje, em que o Islão e o Ocidente Cristão se encontram politicamente. Na leitura da descrição que Paulo fez da transformação espiritual, Gregório de Nissa expandiu ainda mais o conceito de epiktasis, a qualidade que a experiência de Deus possui de não ter fim. Paulo nos ensinou que “nós que contemplamos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente” (2Cor 3, 18). Por meio da contemplação do Cristo Ressuscitado, o ser humano tanto se cura, quanto se completa, como uma imagem de Deus. Os místicos cristãos enfatizam a prioridade da experiência, porém aconselham cautela com as “experiências” que atraem aos olhos. A atenção congelada sobre as experiências individuais, não passa de consumismo espiritual. A fé é a extensão da experiência ao longo do tempo.
Outros dois aspectos da experiência mística de Paulo que modelaram a Igreja deveriam ser destacados. Primeiro, seu impacto no pensamento moral. A conversão de Paulo e a contínua iluminação em Cristo o levaram a alijar a lei religiosa como meio de corrigir a condição humana. Ele expôs a atração fatal de se ver o pecado como a quebra de uma regra que a lei poderia depois endireitar. Em Romanos, ele vê a Lei como uma solução tópica. Ela não pode fazer a cirurgia radical necessária para a cura da autoalienação na alma humana, que é a raiz do pecado. O que pode alcançar isso é a graça e, maravilhosa notícia, onde há pecado, há abundância da graça. A partir da graça, estamos a um passo de ver o amor como sendo a principal energia da prece e da profunda união com Cristo, e com as outras pessoas. Para Paulo, o Cristo Cósmico é o Cristo interior. Este conhecimento é uma sóbria intoxicação com o amor, que dispersa a “fantasia”. E, tal como acreditava Bernard Lonergan, o teólogo Jesuíta do século XX, “o amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5), é a experiência cristã.
Laurence Freeman OSB
Até a Próxima Semana
Escola da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
BRASIL