carta 44 – A maravilha da criação
Só podemos nos maravilhar com a complexidade do cérebro e suas conexões corpo/mente/emoções. Não é surpreendente que os primeiros cristãos sentissem que a única resposta que poderíamos dar à beleza da criação de Deus, da qual somos parte integrante, seria de admiração e reverência. Evágrio Pôntico (4o d.C.), um dos famosos Padres do Deserto e professor de João Cassiano, via a Natureza de fato como o primeiro degrau na jornada espiritual. Para ele, [a Natureza] era o primeiro nível de contemplação, [assim] como era para ele e para os demais eremitas do deserto uma manifestação do Não Manifesto, do Divino. Nesse nível, somos transportados da realidade superficial comum e deixamos para trás, ainda que temporariamente, a dualidade da perspectiva do “ego” e recebemos vislumbres da Unicidade da Realidade Divina. Ele escreveu em uma carta a sua amiga Melânia [a Jovem]: “Quanto aos que estão longe de Deus, Deus tornou possível que eles se aproximassem do conhecimento dele e de seu amor por eles por meio das criaturas”.
Tenho certeza de que muitos de nós já tivemos esses momentos de autoesquecimento, um sentimento de unidade cheio de alegria e gratidão, talvez quando nos deparamos com um belo nascer ou pôr do sol, ou estando imersos na luz da lua cheia, ou cercados por um deserto subitamente em flor ou sozinhos no topo de uma montanha nevada. Estes momentos são inesquecíveis e incutem [em nós] uma convicção absoluta da existência desta Realidade Superior que engloba e envolve a todos. ‘Conhecemos’ então essa essência Divina em nós e ao nosso redor. Jesus disse no Evangelho de Tomé: “Eu sou a luz que está sobre todas as coisas. Eu sou tudo: de mim tudo saiu, e para mim tudo chegou. Divida a madeira; Eu estou lá. Levante a pedra, e você me encontrará lá”.
Esse nível de consciência nos leva então, segundo Evágrio, finalmente ao segundo nível de contemplação das coisas não vistas pelos sentidos, mas diretamente “por um simples olhar do espírito”, que é o resultado de uma oração contemplativa profunda e silenciosa ou “oração pura”, como a chamavam os Padres e Madres do Deserto. Eles ensinaram que só é possível passar por esses níveis se gradualmente deixarmos de lado todos os pensamentos, imagens e formas (em outras palavras, o “ego”, nosso pensamento do cérebro esquerdo). É uma passagem da multiplicidade para a simplicidade e para o silêncio puramente repetindo fielmente uma “fórmula” como a chamavam. Como você sabe, esta é a base da Meditação Cristã redescoberta por John Main nos escritos de João Cassiano. Ele ressaltou que “sabemos que Deus está intimamente conosco e sabemos também que Ele está infinitamente além de nós. Só através do silêncio profundo e libertador é que podemos conciliar as polaridades deste misterioso paradoxo.”
Vimos nos três Ensinamentos Semanais anteriores que temos a capacidade dada por Deus de estar abertos a esse modo diferente de percepção, entrando no caminho para esses dois níveis de contemplação. Mas todos sabemos que a chave – prestar atenção ao nosso mantra – está longe de ser fácil. Muitos de nós, quando nos deparamos com uma mente cheia de pensamentos e imagens, chegamos à conclusão de que ‘Isto não é para mim!’ ‘Não posso fazer isso’, e desistimos. Não somos os únicos. Plotino (205 – 270) – uma grande influência no cristianismo primitivo – disse: “Como é que, tendo coisas tão grandes dentro de nós, não as percebemos… Como é que algumas pessoas nunca as ativam?” Mas temos a opção de desistir ou perseverar. João Cassiano ressaltou a importância do livre-arbítrio aqui: “Consequentemente, sempre permanece no ser humano um livre-arbítrio que pode negligenciar ou amar (…) Graça”.
Esta citação mostra que não só prestar atenção é necessário, mas também graça. Não podemos entrar nessa consciência superior puramente pela força de vontade. Precisamos do apoio do Espírito Cósmico, que nos chega através da parte espiritual do nosso ser. Este dom de amparo do Espírito Cósmico/Santo chamamos de “graça” na tradição cristã. Como diz Evágrio: “O Espírito Santo se compadece de nossa fraqueza e, embora sejamos impuros, muitas vezes vem nos visitar. Se ele encontrar nosso espírito orando a ele por amor à verdade, ele então desce sobre ele e dissipa todo o exército de pensamentos e raciocínios que o assola.” A parte importante nesta citação é “Se ele encontrar nosso espírito orando a ele por amor à verdade”. Para que este dom da graça chegue até nós, a nossa intenção, o nosso desejo de nos religarmos a uma Realidade Superior – “o nosso amor pela verdade” – desempenha um papel ainda mais importante do que uma atenção unidirecional à nossa palavra.
Kim Nataraja