Carta 46 – São Paulo
Cara(o) Amiga(o)
O ensinamento de Jesus, de São João e de Mestre Eckhart nos evidenciam a importância de reconhecer os dois lados da nossa natureza humana. O momento em que percebemos que somos ambas Marta e Maria, que além do ‘ego’ ativo lá está nosso ser espiritual, é visto por Mestre Eckhart como o ‘Nascimento de Cristo na Alma’. Nosso trabalho de meditação/contemplação facilita essa visão e permite a integração necessária desses dois lados de nosso ser. Não paramos ‘de fazer’; o ‘ego’ precisa fazer o que nós fomos chamados a fazer, mas nosso ‘ser’ espiritual verdadeiro infunde nosso ‘fazer’. São João apresenta Jesus como um exemplo da integração perfeita do humano e do Divino.
Essa súbita percepção da mais profunda, mais importante parte do nosso ser foi chamada pelos primeiros Cristãos ‘metanoia’, uma mudança total de perspectiva da realidade. O momento de São Paulo foi dramático, como nós sabemos, mas como Laurence Freeman explica:
“sua conversão foi apenas o começo”… há outras descrições de importância mística… No capítulo 12 da Segunda Carta aos Corintos Paulo se refere à experiência de ser ‘arrebatado ao paraíso’ (‘se no corpo ou fora do corpo eu não sei – Deus sabe’) na qual ele ouviu ‘palavras tão secretas que lábios humanos não podem repeti-las’. Existem similaridades na expressão para o misticismo apocalíptico Judaico, mas é também único, especialmente por ser tão claramente autobiográfico. O significado desse seu recontar, entretanto, não é para ‘vangloriar-se’, que ele diz não ser bom, mas para insistir que as pessoas façam uma estima dele baseando-se no que elas veem, ou seja, em sua fraqueza humana. Como ele é, esse apóstolo individual que recebeu uma tão grande graça mística?
Surpreendentemente, mas significativamente, assim como nós. Ele continua dizendo que recebeu um ‘espinho na carne’ para mantê-lo humilde, uma aflição, à qual, a despeito de suas orações, Deus não a suprimiu. Assim ele seria mantido fraco e humilde, ao mesmo tempo em que recebeu o poder de uma grande graça orientadora para cumprir sua missão.
E é da fraqueza, não das experiências místicas que ele se orgulha, porque o ‘poder de Cristo’ repousa na fraqueza e o poder divino é visto plenamente apenas na fraqueza humana. ‘Pois quando sou fraco então sou forte’. (2Cor 12,10) Aqui nós vemos a renúncia essencial ao poder que está no cerne do mistério de Cristo e da vida centrada me Cristo. O misticismo Cristão se concentra não somente na experiência subjetiva, a qual tão facilmente pode inflar o ‘ego’, mas ainda mais na obra de Deus no contexto maior do mundo e no serviço aos outros. Assim Juliana de Norwich está numa grande tradição quando ela compreendeu suas ‘revelações do amor divino’ como sendo dadas a ela para o benefício dos outros’.
Paulo nunca perdeu o humano, o lado ‘Marta’ de sua natureza, mas foi o lado humano iluminado pelo pela parte espiritual mais profunda de seu ser que infundiu tudo o que ele fez. ‘Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim’. Essa percepção deu-lhe a força e a perseverança necessárias para guiar os outros e mostrar o ‘além’ de nosso ser e da Realidade como um todo.
Laurence Freeman OSB
(Extraído do livro ‘Journey to the Heart – Christian Contemplation through the centuries’)
Até a Próxima Semana
Escola da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
BRASIL